domingo, 12 de fevereiro de 2012

MOQUECA DE MARIDOS

O AMANTE TXOPOKOD E A MENINA DO PINGUELO GIGANTE 

Narrador: Iaxuí  Milton Pedro Mutum Macurap
Tradutor: Alcides Macurap
Outros narradores em português: Buraini Andere Macurap e Menkaiká Juraci Macurap

 
      Uma mulher casada não gostava nem um pouquinho do marido. Achava horrível dormir com ele e o evitava sempre que possível. Vivia espiando os rapazes da aldeia. Era graciosa, andava leve como uma corça, parecia estar sempre dançando, e não lhe faltavam candidatos a namorados.
 
      Um dia, andando pela floresta para apanhar frutos, encontrou por acaso com um dos guerreiros mais valentes. Nem precisaram conversar muito para já estarem rolando no chão entre as folhas, brincando e ardendo.
      Agora, à noite, ela vivia em fogo, imaginando estar nos braços dele, alisando suave suas costas, seu peito, suas pernas, misturando peles, agarrando-se um ao outro.
      Ao pôr-do-sol, quando todo mundo costumava buscar lenha ou tomar banho, eles procuravam se encontrar em algum lugar fechado da mata, não muito distante. Mas sempre havia alguém vigiando, principalmente as crianças, e ela tinha que se cuidar para não voltar com terra ou gravetos grudados no corpo. O seu maior desejo seria receber o amado na rede, num silêncio sossegado, sem serem vistos e sem mordidas de formigas ou outros bichinhos do chão.
      Para fugir melhor das investidas do marido, a moça pendurava sua rede num canto da maloca, um pouco afastada dos demais, e adormecia encostada na parede de palha.
      Um dia, já quase deslizando no sono, ela sentiu mãos que a acariciavam. Começaram pelo rosto, de leve, os dedos desenhando com ternura seus olhos, nariz, boca, faces e pescoço. Foram descendo sem pressa, demoraram-se nos seios e nos bicos dos peitos. Ela se lembrou dos gestos do namorado nas escapadas raras demais e ficou caladinha, morta de medo que alguém os interrompesse. As mãos desceram sábias, não deixaram um cantinho sem tocar e se refestelaram na xoxota. Os dedos dos braços misteriosos que haviam atravessado a parede de palha bolinavam e puxavam o pinguelo, enfiavam-se ousados como se fossem uma lança masculina. Ela estremecia em sóis de prazer, procurava tocar o corpo do amado, desejosa de retribui o dom da magia noturna, mas só encontrava a lisura dos braços, doces como polpa de pariri. Queria furar a barreira da maloca e alcançar o namorado do lado de fora, mas tinha medo de fazer barulho farfalhando a palha.
      Todas as noites, ela esperava ansiosa, e os braços vinham tocá-la. Já  nem corria para o mato atrás do namorado, e ele, durante o dia, quase não lhe falava; era como se não tivessem nada a ver um com o outro. Mas, à noite, como sabia usar as mãos! Elas pareciam substituir com proveito os recursos do corpo de homem proibido de se aproximar, separado dela pela palha! As hábeis mãos pareciam ter gosto especial em encantar o pinguelo, que puxavam e puxavam em carícias de fogo.
      Dia a dia, a moça foi percebendo que seu pinguelo vinha crescendo. Vivia repleta de satisfação erótica, mas aquele pedacinho tão pequeno, tão imperceptível aos outros mesmo na nudez da aldeia, começava a perturbá-la. Passada uma semana, já estava do tamanho do de um homem nos arroubos do amor. Morta de vergonha, ela se escondia de todos, não andava mais para canto nenhum.
      – Por que você vive se escondendo, por que não vem conosco à roça, nem senta perto de nós e do seu marido? – estranhou a mãe.
      Vendo que era impossível enganar quem quer que fosse, ela confessou a verdade à mãe. Revelou até mesmo a existência do namorado da floresta.
      – Como você é ingênua, minha filhinha! Não é um homem, é um Txopokod, um espírito, um fantasma, qu vem namorar você através da palha! E você pensando que é um dos nossos guerreiros! Se fosse gente, chamaria você para te enlaçar às escondidas perto do rio, longe da maloca.
      – Ele vem toda a noite, mamãe, como gente, me ama com tanto jeito e carinho!
      A moça corava, chorava, chorava, com o pinguelo já arrastando pelo chão. Solidária, a mãe convocou os parentes para darem cabo do Txopokod. O marido traído era o que mais estimulava os outros à vingança:
      – Hoje à noite saberemos arrancar os braços desse bicho imundo!
      Os homens passaram o dia afiando as taquaras das flechas, suas lâminas de bambu. Esperaram a noite, silenciaram, espreitaram a moça encabulada, deitada na rede, com o pinguelo pesado.
      A noite ia alta quando o Txopokod a chamou cauteloso, assobiando. Meteu um braço pela palha, logo alcançou o lugar mais sensível, descomunal... e tchok! Ela agarrou o braço, gritou para os homens. Acenderam uma vela de resina de jatobá, correram para ela e zapt! Cortaram o braço.
      Houve um estrondo, e o Txopokod fugiu para o mato. A maloca inteira cercava o braço esquisito, coberto de pulseiras de tucumã, de dentes, de plumas, enfeitado. Saciados de olhar, jogaram o braço-amante na panela de barro, para cozinhar.
      No fogo alto, fervia o caldo de braço, mas nada de mudar o que quer que fosse naquela carne. Não amolecia! Parecia que o Txopokod não tinha ossos, a carne não se desprendia.
      E, espanto maior: já era hora de amanhecer, mas a noite continuava escura. Nenhuma claridade. A manhã virara noite, a noite estava esticada como o pinguelo da moça...
      Não se podia deixar apagar o fogo. É no escuro, sem luz, que os Txopokods vêm para comer os homens, e havia muitos Txopokods, deviam estar com aiva, querendo se vingar. Foi a correria para buscar lenha. Todo mundo atrás de madeira para queimar.
      A lenha se acabou toda, e a escuridão era a mesma. Nada de alvorada. Uma noite que já durava três dias...
      Tiveram que entrar nos milhos e na mandioca, para usar como combustível. Tremiam de medo dos Txopokods, das sombras soturnas na noite. Mantinham o fogo cozinhando o braço, par ao Txopokod não poder vir comer a aldeia inteira...
      – Joguem fora o braço desse fantasma! – ordenou o cacique. – Para que cozinhar esse bicho esquisito? Nosso milho está se acabando, já não temos mais nada para queimar!
      Chegou o Coelho, Kupipurô. Cantava bonito, como cantamos há pouco. Todo mundo pediu para ele entrar na maloca, vir cantar cm eles.
      Percebiam movimentos no escuro, já eram muitos Txopokods no terreiro, rondando as pessoas para um banquete de extermínio.
      Os coelhos Kupipurô resolveram ajudar os homens, levantaram-se e foram cantar, distraindo os Txopokods.
      –  Joguem fora o braço, para os Txopokods não nos comerem!
      Juntaram-se para levantar a panela e pôr o conteúdo num pilão de pedra. Tentaram socar o braço com mão de pilão de pedra, mas era o mesmo que um sernambi – não se desfazia de forma alguma. Também as pulseiras do Txopokods não se quebraram..
      Terminaram por desistir e jogar o braço no terreiro. O dono, o Tsopokod namorador, correu e grudou o braço outra vez no próprio corpo. Mais que depressa procurou um igarapé, porque seu braço estava queimando. Jogou-se na água. Dizem que por isso a água desse igarapé é quente, porque lá é que o braço fervente mergulhou...
      O Txopokod ia nadando em todos os rios e igarapés que encontrava, para esfriar. Só no último, já perto da cachoeira do Paulo Saldanha, o fogo do braço apagou. Por isso esse igarapé tem água fria.
      Quando o calor do braço acabou, a noite comprida se extinguiu, o dia foi amanhecendo outra vez e a paz voltou à aldeia. Muitos dias de luz perdida tinham se escoado, já era de tarde, próximo do escurecer.
      Cortaram o pinguelo da mulher e jogaram dentro d’água – virou poraquê, o peixe-elétrico. A cuia onde levaram o pinguelo virou caranguejo. O marido traído não a quis mais, teve medo. Quanto ao namorado, não se sabe se ainda a quis, tudo é segredo... Mas o Txopodod nunca mais voltou.

       A CANTIGA KOMAN
      OU
      AS MULHERES DEVORANDO MOQUECA DE MARIDOS 
Narradores: Überiká Sapé Macurap e Iaxuí Miton Pedro Mutum Macurap
Tradutores: Biweiniká  Atire Macurap e Alcides Macurap
Outros narradores em português e em Macurap: Buraini Andere Macurap e Menkaiká Juraci Macurap

 
A dona da música, dos sapinhos e do jenipapo 
      As mulheres mandaram as meninas pegarem sapinhos e peixinhos numa lagoa, para assarem e comerem. A meninada obedeceu contente, viram as água nas margens escurecem de tantos bichinhos nadando de um lado para o outro.
      Já  estavam apanhando grandes bocados de sapinhos novos, quando no meio da lagoa apareceu uma velha hedionda boiando, chamada Katxuréu. Viu as meninas catando peixinhos:
      – Minhas netinhas, vocês estão estragando nossa música e nosso jenipapo!
      – Não estamos estragando nada, vovó! Nossas mães nos mandaram pescar para comermos!
      – Vocês estão pensando que apanham peixinhos e sapinhos, mas essa é nossa música, nosso jenipapo de pintar o corpo! Vou ensinar vocês a cantarem.
      A velha Katxuréu pôs-se a cantar e a música era tão linda que as meninas mal respiravam, seduzidas, tentando aprender.
      – Agora vão chamar as mães de vocês para aprenderem também os meus cantos, minhas mocinhas, expliquem que vocês estavam roubando, não os sapinhos novos da lagoa, mas nossa música e nossa tinta de pintar!
      As meninas voltaram à maloca e as mães resmungaram ao ver que não traziam nada.
      – Como podíamos ter pescado? – explicaram. – Lá nas águas há uma velha chamada Katxuréu, que mandou buscar vocês para aprenderem umas cantigas belíssimas, e nos avisou que os sapinhos novos eram sua música e seu jenipapo e não devíamos levar nada embora!
      As mães, curiosas, acompanharam as filhas na visita à velha Katxuréu.
      – Elas falaram a verdade, minhas filhas – confirmou a dona da lagoa – Nadando nas minhas águas está a nossa música e o nosso jenipapo, não são peixes. Venham, vou ensinar vocês.
      Meninas e mulheres foram dançando e cantando em toda horas a fio, transportadas a uma esfera encantada. Tão entretidas estavam, possuídas pela música, que nem viam o tempo passar – mas foram sentindo fome.
      A velha Katxuréu aparecia quase inteira boiando na água, ensinando os cantos numa forte. Os cabelos dela eram pretíssimos, compridos até  os pés, quase assustadores de tão bastos, mas muito bonitos. A velha viu que estavam gostando e ordenou:
      – Amanhã vocês vêm de novo para cantar bem afinado comigo a cantiga Koman. Antes, passem a matar os maridos de vocês, um a cada dia, para comermos enquanto cantamos. Essa é a verdadeira comida, não os nossos peixinhos e sapinhos.
      As mulheres ficaram chocadas, mas foram pensando, pensando, lembrando da música, e em pouco tempo ficaram animadíssimas para começar a matar os homens.
      –  Quem vai ser a primeira a matar? Quem vai mata hoje?
      – Sou eu, sou eu! – várias vozes responderam ao mesmo tempo. Escolheram uma delas. 
      Moqueca de maridos 
      De madrugada, uma mulher matou o marido adormecido, botou-o no marico e tampou com palha. Cedinho, disse que ia para a roça com as outras. Levaram o cesto, cozinharam num panelão de barro, e comeram com a velha da lagoa.
      Assim foi acontecendo todas as noites. Cada vez um outro homem desaparecia, e as mulheres passavam o dia na lagoa, cantando com a velha e comendo a carne dos maridos.
      Os homens não entendiam o que estava acontecendo, porque iam sumindo um a um. As mulheres diziam para eles que iam para a roça, mas demoravam tanto, voltavam tão estranhas, que começaram a desconfiar que andavam mentindo.
      Combinaram entre si que precisavam descobrir qual era o mistério. Não podiam mais deixar acontecer tanto sumiço sem fazer nada. Cada vez que um deles ia buscar palha para fazer o cocar com que se enfeitavam durantes as festas de tomar chicha, acabava desaparecendo para sempre. E enquanto isso as mulheres saíam para fazer a chicha e ir à roça... Seria verdade? Daqui a pouco não ia restar homem nenhum, só as mulheres! Elas não sentiriam falta de namorar, de deitar com aqueles-com-quem-sempre-brincavam? Teriam outras brincadeiras?
      Ficou assentado que iriam todos caçar, para elas ficarem bem desprevenidas, e que só um rapaz ia ficar na maloca, tentando desvendar o segredo.
      Quando todos saíram para a caçada, o moço fingiu que estava com febre e deitou-se perto do fogo, tiritando. As mulheres, com pena, cuidaram dele – mesmo as mulheres que já tinham matado o próprio marido. Puseram para ele uma panela de chicha e o deixaram estirado na rede. Vendo-o largado, saíram da maloca. 
      A dança macabra 
      A mulherada matara o marido de uma delas na véspera, escondendo o corpo numa sapopemba bem próxima da casa. Foram correndo buscar, antes de ir cantar com Katxuréu. Supunham estar a salvo dos olhos masculinos, pois só havia por perto o rapaz doente, incapaz de se mover.
      Ele, no entanto, assim que se viu sozinho, trepou no jirau de armazenar milho e entreabriu as palhas do telhado, procurando enxergar lá de cima as recém-saídas. Viu muito bem a mulher retirar o marido morto do esconderijo, jogar no marico e carregar nas costas.
      Desceu mais que depressa e foi procurar os homens no acampamento da caçada.
      – São mesmo elas que estão acabando conosco, nos matam um a um!
      Uma fúria sem tamanho tomou o grupo. Prepararam as aljavas, que encheram de flechas de mamuí, e seguiram pelas trilhas atrás das mulheres, prontos para desgraçadas!
      – Vamos matar essas desgraçadas!
      Pelos sinais e pegadas no chão, logo chegaram à lagoa, caminhando num silêncio propositado, ameaçador.
      Ainda na mata, cercaram as mulheres. Estavam todas em roda, dançando e comendo, bem cozidinho, um dos homens que haviam matado. Cantavam, tomadas pó  uma alegria feroz, ao som da taboca da velha Katxuréu. Mesmo em meio ao ódio e dor, os homens ficaram impressionados pela força da música, a da cantiga Koman, a da velha. Ela dançava também, soprando a taboca, o cabelão preto bem solto, cobrindo o peito enrugado.
      Os ossos dos homens mortos estavam pendurados em fios, ou enfeitavam as pernas da velha e das dançarinas. Já de longe se ouvia a zoada dos pés no chão, na roda: “pá, pá, pá...”
      – Quem vai matar hoje? Quem quer dar um marido para comermos?
      A vingança 
      Nesse minuto, em meio à dança, a corda dos ossos se quebrou. Foi como se adivinhassem que estavam cercadas, ao receberem o aviso repentino. Os homens a um só tempo flecharam a mulherada. Mataram todas e reuniram os cadáveres das mulheres e chamaram Katxuréu, que conseguira escapar para a água:
      – Vovó, saia da lagoa, venha nos ensinar a cantar! Achamos a sua música tão bonita!
      Chamavam e chamavam, mas a velha nada de aparecer. Não era boba; caíra no fundo do poço onde morava. Os homens insistiram e rogaram tanto, que ela acabou boiando, com água pela cintura, levando sua tabocas muito bem-feitas.
      – Cante para nós ouvirmos!
      A velha cantou o mesmo que para a mulherada e os homens também ouviram em êxtase. Queriam mais e mais, mas se lembraram do que acontecera:
      – É lindo esse canto, vovó, mas você matou muitos homens, temos que nos vingar!
      Katxuréu abria a boca, arreganhava os dentes e se gabava:
      – É com esses dentes afiados que eu comi vocês, comi muitos homens!
      Os dentes branquinhos luziam no meio da lagoa, quando um homem, com pontaria certeira, atirou uma flecha na dentadura e quebrou-a. mesmo assim a velha não morreu, continua viva até hoje. 
      Os homens sem mulheres 
      Os homens voltaram para a maloca, agora sem mulheres para cozinhar e namorar.
      Na hora em que as mulheres foram flechadas, só haviam sobrado duas menininhas, abrigadas atrás de um tronco. Apenas o cacique as viu – eram suas irmãs. Percebeu que choravam, e elas disseram que era pelo irmão e pelo tio que a mãe e a tia tinham matado.
      – Vocês comeram seu tio, seu irmão?
      – Não, mamãe não deixou a gente comer, não!
      O cacique conseguiu levar as duas e esconder num jirau alto. Só  elas escaparam da vingança. Ninguém sabia delas, foram crescendo.
      Agora os homens é que cozinhavam a chicha, mascavam o milho, cará  ou mandioca para fermentar a bebida. O gosto era muito ruim, sem doce, mas que outro jeito haveria sem mulheres? Reclamavam, cuspiam a chicha, mas não havia outra.
      Iam se revezando, cada vez um ficava na cozinha em vez de ir fazer as tarefas de homem, caçar ou ir à roça. Por fim o cacique se ofereceu para cozinhar. Mandou todo mundo ir caçar no outro dia.
      Sozinho na maloca, sabendo que todos estavam no mato, desceu as duas irmãs do esconderijo. Queria que o ajudassem a cozinhar, mascassem pedacinhos de milho para adoçar a chicha, o que os homens não sabiam fazer.
      Desceram contentes, trabalharam e voltaram à sua toca no alto. O cacique varreu bem todos os restos de farelo ou casca para não deixar vestígios.
      Todos adoraram a chicha:
      – Que diferente! Agora, sim, está uma delícia! O nosso cacique faz chicha doce, gostosa, enquanto a nossa não presta.
      – É que sei fazer, aprendi, meus amigos – respondia modesto.
      Não sabiam que estavam tomando chicha de mulher de verdade.
      O cacique passou a mandar que caçassem sempre que era preciso fazer chicha, cada três ou quatro dias. As meninas, já grandinhas, desciam, faziam o tempero, mascavam para adoçar a chicha. Os outros bebiam com gosto ao chegar.
      Tanta caçada os fez, por fim, que o cacique está nos ocultando!
      O cacique terminou por contar a verdade.
      – Não deixei matarem minhas irmãzinhas, que não tinham comido carne de homem!
      – É bem verdade que chicha feita por homem não tem esse gosto especial!
      O outro começo do mundo e a cantiga Koman das mulheres
      Desceram as meninas, duas mulherzinhas. Casaram e o povo foi aumentando outra vez. O irmão, o cacique, não arrumou família logo – só bem mais tarde, quando já havia mulheres que não eram mais suas irmãs, quando suas sobrinhas cresceram.
      Se não fossem essas duas irmãs, não haveria mais gente Macurap no mundo. Elas não esqueceram, ensinaram às mulheres a cantiga Koman, que tinham aprendido com a velha Katxuréu. Até hoje cantamos a cantiga Koman.

A menstruação, os namorados irmãos, a lua e o jenipapo 
Narradora: Überidá  Sapé Macurap
Tradutora: Biweiniká  Atire Macurap 
      Antigamente, os homens é que ficava menstruados. Ficavam em reclusão numa maloquinha, sentados, com sangue escorrendo do pinguelo. Assim era, e as mulheres bem sossegadas, andando por aí. Um dia, uma mulher casada foi namorar o seu xodó que estava menstruado; ele jogou o sangue na xoxota dela. Desde então, as mulheres é que passaram a ficar menstruadas, em vez dos homens.
      Conta-se a história da menstruação também de outro jeito.
      Havia uma moça solteira, bem menina, que de um dia para outro começou a receber em sua rede, à noite, a visita de um apaixonado. No primeiro dia ela estava semi-adormecida e ao abrir os olhos na escuridão percebeu um corpo forte que a abraçava. O desconhecido pediu que ficasse quieta e tantas palavras lindas lhe disse, revelando como há tempo gostava dela e como estava doido para namorarem, tanto a afagou com delicadeza e perícia, que ela se deixou levar. Era impossível ver o rosto do namorado – não havia nem sequer um breu aceso.
      Passado um tempo, a menina começou a ficar curiosa para saber quem era o seu amado. Contou para os parentes e para a mãe que estava muito feliz mas não sabia com quem. A mãe a aconselhou a pintar o rosto do sedutor, para no outro dia descobrir a sua identidade.
      A menina tinha muito urucum para pintar seus cintos. Depois do amor, pintou o rosto do namorado. No dia seguinte, observou o rosto de todos os homens – não havia nenhum pintado. É que o rapaz levantara cedinho e lavara o rosto no rio.
      Pensando que o banho poderia ter apagado a pintura, a menina resolveu experimentar outra tinta – a de jenipapo, que não sai por muitos dias, mesmo com água. Deixou uma cuiazinha com tinta ao lado da rede, e quando o namorado adormeceu, pintou-o suavemente, evitando que acordasse.
      No outro dia, de madrugada, foi se esquentar na fogueira com todos os habitantes da maloca. Olhava os homens, procurando a tinta – não via nenhum rosto pintado. Notou que estavam todos, menos o irmão, e um frio percorreu sua espinha.
      Daí  a pouco veio chegando o irmão para junto do fogo. Fora banhar-se no rio gelado, e voltava sem perceber que o seu rosto ainda estava pintado.
      – Então é meu próprio irmão o homem por quem me apaixonei no escuro! – lamentou-se a menina, num choro desatado.
      O irmão afastou-se, morto de vergonha e tristeza. Ficou escondido no mato, e chamou um amigo para avisar o que pensava fazer:
      – Vou embora para o céu, só me resta sumir! Aqui não tenho mais lugar, fiz o que não devia com minha irmã. Vou ser Uri, a Lua. Vou aparecer dentro de alguns dias; você avisa os nossos companheiros que devem sair da maloca para me ver, e que quando eu aparecer no céu devem me chamar de Uri, meu novo nome.
      Foi assim que o irmão partiu da terra. Durante três dias, as noites foram escuríssimas e ninguém o viu. No terceiro dia, o céu se iluminou, à noite.
      O amigo chamou todo mundo para o pátio:
      – Venham ver Uri, a Lua!
      A irmã foi junto. Já sabia que era o seu amado proibido.
      Olhou só um pouquinho e entrou na maloca. Mesmo assim, ficou menstruada.
      E desde então as mulheres ficam sempre menstruadas.

       A MENSTRUAÇÃO DOS HOMENS 
Narradora em português: Etxowe Etelvina Tupari

 
      Antigamente os homens é que ficavam menstruados. Isolavam-se num tapirizinho perto da aldeia. Só tomavam banho nas horas do lusco-fusco, de madrugada ou ao entardecer. Deviam ficar fora do alcance dos outros, principalmente dos pajés, que jamais poderiam tocar em um homem menstruado.
      Um jovem guerreiro estava menstruado, em reclusão no seu tapirizinho. Guardava o sangue que escorria num potezinho de barro. De quando em quando se agachava, pingava o sangue numa tanguinha de palha, tamará em Tupari, e derramava na panelinha.
      Passavam ao largo as mocinhas para ir ao rio tomar banho, espiando curiosas. Uma delas caçoava, sarcástica:
      – Bem feito para os homens, têm que ficar aí fechados, escorrendo sangue, menstruados, com inveja de nós que passeamos à vontade... Nós ficamos livres, ninguém no nosso pé, e eles humilhados, enxugando sangueira...
      o rapaz ficou tao vermelho de raiva como o sangue que juntava no potinho.
      – As coisas não podem ficar assim, nós sempre sofrendo com a menstruação, trancados aqui! Vou dar um jeito nisso... – resmungou.
      Passou um companheiro seu do lado de fora e ele pediu que trouxesse um talo do capim punhakam.
      No outro dia, a mocinha passou de novo e zombou dele ainda com mais desprezo:
      – Eh, seu infeliz, como vai você por aí, cheio de sangue escorrendo, sem poder ver a luz do sol? Bom é estar como eu, limpa e pingando gotas de água cristalina, andando por onde quiser...
      O moço pegou o talo de capim, encheu-o de sangue como se fosse uma colher e jogou no corpo dela – acertou em cheio, bem no meio das pernas.
      Nesse dia, as mulheres todas ficaram menstruadas, as novinhas, as pequenas, as velhas, sem exceção. Desde então, as mulheres é que passaram a ficar menstruadas, em reclusão cada mês. No começo até as meninas e velhas tinham menstruação – depois só na idade madura.
      Agora os homens é que zombavam delas.

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